terça-feira, 14 de abril de 2009

GOTA D'ÁGUA


"Em meados da década de 70, Paulo Pontes e Chico Buarque uniram suas forças para recriar nos palcos o mito de Medéia - clássico da tragédia grega que mostra que não se deve subestimar a força de uma mulher traída! Na transposição para a realidade brasileira, Medéia virou Joana, uma mulher do povo, rebelde e cheia de indignação, num mundo masculino e opressor, que tenta silenciá-la à força. Em tempos de ditadura, a força dessa mensagem ganhava contornos ainda mais heróicos. E, para viver um mito de tamanha envergadura, só outro mito: Bibi Ferreira marcou não apenas a sua carreira, mas a história do teatro e da música. É arrepiante ouvi-la recitar trechos da peça em um disco que já se tornou objeto de adoração entre a gente de teatro, através dos anos e o texto transformou-se em objeto de culto e sonho de muitos atores e atrizes.

Izabella Bicalho é uma dessas atrizes que sonhou e lutou para recolocar no palco "Gota D'Água". Para isso, cercou-se de uma equipe competente e talentosa - a começar pelo diretor João Fonseca, responsável por alguns excelentes e premiados trabalhos, como "Pão com Mortadela" e "Escravas do Amor". O clima fraternal fica evidente no trabalho e a dedicação e a paixão de todos, também.

O cenário simplificado e austero de Nello Marrese resume-se (num primeiro momento) a uma estrutura metálica, que lembra palafitas no fundo do palco e em degraus de madeira que ganham vida nas coreografias do elenco, transformando-se em diversas composições. No final do primeiro ato - sim, como bom clássico, temos dois atos - revela-se no alto da estrutura metálica um impressionante altar, quase uma instalação, um retrato do sincretismo religioso do nosso povo, do qual Joana é a personificação perfeita. De santos a entidades, Joana recorre a todas as forças da natureza para realizar a sua vingança contra Jasão, o amado (alguns anos mais jovem), que a abandona com os dois filhos, depois que vira um compositor de sucesso, para casar-se com Alma, filha do poderoso Creonte.

Com um quarteto ao vivo, dirigidos por Roberto Bürgel, o elenco desfia as canções de Chico - aquelas feitas para a peça, como a que lhe dá o título, e mais algumas do compositor, o que a torna ainda mais atraente para os sentidos. Como a peça foi escrita em versos, a direção optou por musicar alguns trechos, criando números musicais onde havia monólogos ou diálogos. Apesar da qualidade da direção musical e vocal dos intérpretes, a sensação que se tem é que essas criações inéditas ficam aquém das composições de Chico Buarque e não acrescentam à força poética e sonora da peça. A iluminação de Luiz Paulo Nenen não abusa dos efeitos, o que, nesse caso, só favorece ao espetáculo.

O elenco é bem equilibrado, em especial quando encontra em Thelmo Fernandes, um Creonte sem falhas, na medida exata da complexidade do personagem, capaz de percorrer com segurança a sua partitura emocional, que vai de pai amoroso a um poderoso covarde! É bem verdade que, no texto de Chico Buarque e Paulo Pontes, o vilão é bem menos ameaçador do que se poderia esperar de alguém tão temido (trata-se apenas do proprietário das casas), mas a peça tem suas concessões ideológicas, naturais da época em que foi escrita e Creonte é, basicamente, o capitalista impiedoso, que detém o poder e determina o modo de viver do povo.

Pedro Lima (cantor do grupo "Garganta Profunda") demonstra que seu talento não está restrito à música e André Araújo é responsável por bons momentos, destacando-se em personagens secundários.

Lucci Ferreira apresenta um Jasão óbvio, mais afeito aos maneirismos do malandro do que às contradições do personagem, mas bastante crível. Izabella Bicalho surpreende e defende com unhas e dentes a sua Joana, construindo momentos de grande beleza. Mas luta contra sua inegável jovialidade quando o peso de uma mulher de 45 anos é exigido da personagem, que nem os cabelos, agrisalhados à base de maquiagem, nem o tom de voz forçadamente dramático, conseguem disfarçar. O figurino de Natália Lana, perfeito em todos os demais, no caso dela, só consegue ressaltar a mocidade da intérprete. Ainda mais quando ela contracena com os excelentes Luca de Castro e Kelzy Ecard que, mais maduros e bem adequados aos seus papéis. Mas estamos falando do sonho de uma atriz e todo sonho realizado - ainda mais com tanto empenho - merece respeito.

Apesar desses pequenos "poréns", João Fonseca construiu uma "Gota D'Água" de arrepiar, de excelente apuro técnico e artístico, que merece ser visto e aplaudido".


Fonte: Fotolog Teatro e Cia - 01/03/2008.

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