terça-feira, 6 de julho de 2010

Musical 'Gota d'água' chega à web através de duas noites de captação ao vivo



Clique-teatro


‘Opa, vai voltar, preciso gravar. Vamos lá, galera, câmera 7, 1... Ô 3, cruza para mim porque tem um monte de gente passando na frente. 5, segura um pouco e, atenção, atrás da cortina sai uma menina... A lapela da de azul tá falhando.

Olha que vai entrar o velho ao lado dela... O Flamenguista tá em pé, mas não vai falar nada. Concentra neles. É nos dois! — ordena o diretor de corte Marcos Paulo Silva.

Do lado de fora do Teatro João Caetano e do lado de dentro de um caminhão de edição estacionado na calçada que ladeia o teatro, ele coordena uma equipe de dez câmeras responsáveis por captar a intensidade das expressões faciais, dos movimentos corporais e a limpidez dos diálogos travados pelos atores Thelmo Fernandes e Armando Babaioff, ou melhor, o sogro Creonte e o genro Jasão de “Gota d’água”. Personagens centrais do musical assinado por Chico Buarque e Paulo Pontes, neste fim de semana os dois, acompanhados do elenco, ganharam as telas de quase uma dezena de monitores espalhados pelos consoles do caminhão de edição do Cennarium — portal especializado em captar e veicular montagens teatrais via web. Responsável pelo corte final do vídeo, capturado em alta definição, seus dedos não desgrudam das dezenas de botões e teclas da cabine, assim como suas ordens não cessam de mudar quadros, focos e criar um misto de teatro, cinema e televisão.

— Caço quem está em primeiro plano. Dirijo os câmeras em tempo real, mas hoje estou gravando em outra fita também... Se tiver algum erro, a gente conserta. É uma superprodução, né? — diz.

Uma superprodução e uma superoportunidade.

Uma hora antes do início da sessão, marcada para as 20h do último sábado, a fila dava voltas em frente ao João Caetano: “Ingressos pela internet, aqui! Agora, acabou, ingressos esgotados...

Talvez sobre espaço no chão”, gritava alguém da produção. Mais do que poder assistir à montagem que deixou os cartazes da cidade em 2008, o happening que movimentava os arredores da Praça Tiradentes naquela noite tinha um motivo que a maioria dos espectadores desconhecia.

A produção do espetáculo e os representantes do Cennarium reuniam-se ali para levar a encenação para a internet, em mais uma tentativa de sedimentar um novo hábito entre internautas: Assistir a peças em casa, de frente ao monitor ou a uma TV plugada no computador.

Que tal a ideia? — Não... Acho que o teatro é efêmero e deve permanecer como sempre foi — afirmava a atriz Camila Nhary, 24 anos. — Sou atriz e quero que as pessoas saim de casa para me assistir.

Mas e se as pessoas estiverem no Acre ou no Japão? — Se as peças não rodam o país todo, deveriam, através de algum incentivo... É triste que isso não aconteça. Mas eu não assisto nem a DVDs das peças que faço... Será que isso vai depor contra mim? A sinceridade misturada à desconfiança de Camila era a mesma professada pelo estudante Renato Damião, 24 anos: — Eu quero ver os atores em cena, assistir ao que acontece na hora. Não vejo filmes na internet, e acho que em teatro perde-se o frescor. Mas pode ser bom porque amplia a difusão.

A frase final chega um pouco mais perto da ideia de ampliar — e não a de restringir — o alcance das peças e a importância do caráter presencial.

— Acho que é uma outra linguagem.

Não deve ser encarado como um mero registro, mas, sim, um novo produto audiovisual. Assim como o que é feito com as óperas, que hoje são dirigidas por gente de cinema — aposta o distribuidor de filmes Maurício Borges, 32 anos.

E é encarando a oportunidade como uma tentativa de se lançar ao desconhecido, em mais uma plataforma aberta pela internet, que o diretor João Fonseca enxergava a noite.

Sentindo-se uma “espécie de cobaia”, teve pouco mais de uma semana para levantar o espetáculo, com a ajuda da atriz e produtora Izabella Bicalho. A poucos minutos do terceiro sinal, a excitação era evidente: “Só depois, só depois...”, indicava ele à assessora, que lhe pedia uma entrevista e uma foto. E logo após o cerrar das cortinas, depois dos aplausos de um João Caetano lotado, com dezenas de espectadores sentados ao chão, ele pôde avaliar o que acabava de testar.

— A gente não sabe onde isso vai dar. No começo, eu tive receio.

O que é isso? Percebi que esse teatro gravado é outra coisa, uma experiência a ser considerada — ressalta. — Estávamos com um espetáculo que não voltaria a ser encenado em nenhum lugar do país. Fizemos um registro que poderá ser visto no mundo inteiro. A internet está aí, não há como fugir...

Ela não atrapalha em nada, temos que tentar esse caminho.

Desde que entrou no ar, no dia 27 de março, o Cennarium contabiliza 250 mil acessos únicos de internautas espalhados por mais de 96 países e 360 cidades brasileiras, cerca de 60 peças captadas dentro de uma projeção que dá conta de cem até o fim do ano. De olho em novos mercados, lança em dez dias uma plataforma para iPhone que servirá a estreias de peças comandadas e estreladas por nomes como Paulo Betti, Mel Lisboa, Eduardo Moscovis, Paulo José e o próprio João Fonseca, que verá “Era no tempo do rei” circular no portal a partir desta quinta-feira, por R$ 20.


— Chegamos a cidades que não têm teatro, legendamos as peças em três idiomas (inglês, espanhol e francês), adicionamos o sistema de closed caption (para deficientes auditivos) e estamos começando a construir vínculos com patrocinadores — revela o diretor do Cennarium, Roberto Lima. — Ganhamos a confiança dos grupos de teatro, mostrando que precisamos deles vivos para sobreviver.

Lima faz coro à ideia de que o registro do Cennarium “não é bem teatro...”, mas, sim, uma linguagem capaz de “ampliar o entretenimento e o mercado”. Para isso, ao lado da produtora Maria Sima, ele anuncia a captação de peças de peso como “Macbeth”, “Ensina-me a viver” e muitas outras para breve.

— O teatro tem a atmosfera, o clima, a respiração do ator... O que nos diferencia de tentativas anteriores é a qualidade da captação, que aproxima em 80% da experiência real. Trouxemos uma diferente forma de degustação ao teatro.


O Globo - Luiz Felipe Reis - 06/07/10

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